Por Fabian Chacur

Apresentado ao vivo pela primeira vez em 2011, no Brasil, o projeto Espelhos- Canções Portuguesas reúne as cantoras Cristina Rosal e Ana Milena Rocha e os músicos Pierre Gillet (violões de seis e sete cordas), Miguel Rosal (baixo e contrabaixo acústico) e Thibault Dille (acordeon e acordina), oriundos de Moçambique, Lisboa e Bruxelas (cidade da Bélgica, onde o projeto foi concebido).

Com o objetivo de resgatar a poesia popular e erudita da música portuguesa, o quinteto lançou o CD Espelhos-Canções Portuguesas, distribuído no Brasil pela Tratore e com ótimo resultado comercial até o momento, algo a se louvar, se levarmos em conta a qualidade artística desse álbum impecável e belíssimo, com direito a embalagem e encarte de primeira linha.

Em entrevista exclusiva concedida via e-mail a Mondo Pop, Cristina Rosal fala sobre essa maravilhosa aventura musical que nos dá a dimensão da beleza da canção portuguesa, mas sem cair em limitações de estilo e com a liberdade de injetar elementos de outros gêneros e ritmos musicais com o intuito de agregar beleza artística à obra.

Mondo Pop- Como, quando e onde surgiu a ideia de criar o projeto Espelhos?
Cristina Rosal (CR) –
É difícil falar do projeto Espelhos sem fazer referência à nossa associação D’ARTE (www.darte.be ), que surgiu em Bruxelas, na Bélgica, em 2002. Dizíamos nessa altura – e continuamos a afirmar – que foi do prazer do canto e da música, da felicidade dos encontros, que este grupo nasceu. Por isso, as forças vivas da D’ARTE são amizades, talentos, acasos, tradição e convicção. Espelhos é o resultado natural de um trabalho que temos vindo a desenvolver desde a criação da D’ARTE e correspondeu a uma vontade de registar as nossas experiências em palco. Na verdade, “espelhos” era o nome do show inicial (« espelhos-canções portuguesas entre oceanos »). Este show foi concebido para ser apresentado em Salvador da Bahia, em Setembro de 2011. Pensámos este projeto como um percurso de melodias que são ecos de sentires. Cantar no Brasil vozes e poemas de Portugal é de fato uma partilha de alma e de tudo o mais que nos oferecemos mutuamente, daquilo que nos une. A musicalidade e a poética da nossa língua comum ecoam no lundu e no fado, na chula e no samba, na MPB e na música popular portuguesa. No fundo, estes sons e estes poemas são olhares nos dois sentidos do oceano. É nesse sentido que nos espelhamos!
Passar do nome do projeto ao nome do grupo não foi difícil. Os nossos amigos e o nosso público começaram a chamar-nos “espelhos”. Nós gostamos e pareceu-nos que fazia sentido adotarmos esse nome.

Fale um pouco sobre o critério da seleção do repertório do CD, que mistura canções próprias e do cancioneiro português.
CR –
A escolha do repertório segue um fio de afetos alegres e sonoros. Esse fio liga saudades, mares e gente. Ele é tecido pela própria heterogeneidade do grupo nas idades, nas nacionalidades e nos percursos pessoais, musicais e culturais de cada um. É, sem dúvida, um projeto de música portuguesa, mas sem rigidez nem purismos exacerbados. Escolhemos o que nos diz, emociona e nos dá prazer tocar e cantar.

A inclusão de temas instrumentais intercalados às canções ajuda a dar ao mesmo tempo uma leveza e uma profundidade musical ao disco. Falem um pouco sobre essa opção.
CR –
É de fato uma opção estética e musical. Damos o mesmo espaço à palavra (popular e erudita) e às composições instrumentais. Ao fazê-lo, estamos a dar espaço a cada elemento do grupo. Às vozes e ao instrumento que cada um dos músicos toca. Foi uma escolha, as cantoras e os músicos teriam exatamente o mesmo protagonismo. Os músicos não seriam apenas acompanhantes. A mistura das canções com os temas instrumentais, como você comentou, dá leveza, mas também consistência e profundidade.

Vocês interpretam as músicas e poesias portuguesas sem se prender a uma abordagem tradicionalista. Como o público português reagiu a isso? Vocês tiveram algum tipo de problema com os mais tradicionalistas em relação a essa opção estética?
CR –
Sem dúvida que não é uma abordagem tradicional da música portuguesa, mas num grupo com origens e percursos musicais tão diferentes, seria quase pecado não aproveitar essa diversidade. O jazz, a música portuguesa e a música brasileira dão a sonoridade aos instrumentais e aos poemas que são cantados, tendo sempre o fado como referência. No fundo, deixamo-nos visitar pelos diferentes companheiros de viagem das nossas vidas.
Nos dias 27, 28 de fevereiro e dia 1º de março atuaremos pela primeira vez em Portugal. Temos plena consciência que, por exemplo, a reação dos “puristas“ do fado poderá não ser muito entusiasta. Vamos ver.

O Projeto Espelhos é formado por pessoas de várias etnias e descendências, com ares fortemente globalizados. O Brasil é um país com esse perfil. Vocês acham que isso explica um pouco o sucesso de vocês por aqui? Falem também um pouco de como foram esses shows no Brasil para vocês em termos de repercussão e intercâmbio com o público.
CR –
Somos cinco, nascidos em Moçambique, Portugal e Bélgica. Três são portugueses e dois belgas. Um dos portugueses nasceu na África e outro tem ascendência alemã. Um dos belgas – Pierre Gillet – tem ascendência brasileira. O seu bisavô tem uma rua em Fortaleza com o seu nome – Rua Maestro Silva Novo. Essa diversidade, que se repercute necessariamente no nosso trabalho, talvez explique o sucesso e a aceitação que tivemos junto do público brasileiro. Sempre a espelharmo-nos.
Acho que nos revemos no que disse, um dia, o grande escritor português Miguel Torga: quando tocamos e cantamos a lusofonia (popular ou erudita) « …é um efeito irremediável dum tropismo que nos anda no sangue e nos chama em qualquer parte do mundo ».
Em todos os shows que realizamos no Brasil o público aderiu de uma forma entusiasta. Para nós foi muito prazeroso sentir essa reação. A comunicação fez-se com muita naturalidade. Sem querer ser vaidosos, por onde passamos, agradamos, e as portas ficaram abertas, o que quer dizer algo.

A canção Avé Maria é dedicada à saudosa dona Canô Veloso, mãe de Caetano Veloso. Como vocês tiveram a oportunidade de conhecê-la? Também tiveram contato com Caetano? Falem sobre isso e de como surgiu a ideia desta bela homenagem.
CR –
Sim, tivemos a honra e o privilégio de cantar na festa de comemoração dos 104 anos de Dona Canô Veloso. Na véspera do aniversário, no seu quintal, no dia do aniversário – ao café da manhã e na missa de comemoração – onde cantámos a Avé Maria . Cantar para Dona Canô Velloso na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação foi um momento único, inesquecível e muito inspirador para todos nós! Eis a razão pela qual lhe dedicámos essa canção no nosso CD. Com Caetano Veloso cruzamo-nos na festa. Ao fim do dia, onde voltamos a cantar no quintal, Caetano Veloso esteve conosco a escutar algumas canções.A vida fez que um dia eu chegasse a Santo Amaro e ficasse amiga da família Veloso, especialmente, de Rodrigo e Roberto, irmãos de Caetano. É um lugar onde volto cada ano.

O disco de vocês foi viabilizado por uma ação de crowdfunding. Falem um pouco sobre essa experiência, e se vocês concordam que essa é uma saída para viabilizar projetos musicais mais consistentes em uma época em que as gravadoras tiveram seu poder muito reduzido devido à pirataria e à internet.
CR-
A experiência do crowfunding foi para nós primordial, pois de outra forma dificilmente gravaríamos um CD. É uma alternativa para viabilizar projetos musicais que são, desde o início, financiados pelos nossos fãs. Acabada a campanha, estavam quase quinhentos CDs vendidos, a circular como contrapartida do montante investido pelas diferentes pessoas. Acabou por ser, à nossa dimensão, uma máquina importante de divulgação do nosso trabalho.
A redução do poder de muitas gravadoras é um processo inevitável, pelo impacto daquilo a que chamamos “globalização” e pela generalização das novas tecnologias de informação e comunicação. Quanto à pirataria, infelizmente, ninguém se salva.

O disco foi gravado na Bélgica. Como o público de lá recebeu o Projeto Espelhos?
CR –
A receptividade do público belga tem sido significativa e, sobretudo, duradoura. Desde o primeiro concerto da D’ARTE, em 2002, de homenagem a Amália Rodrigues, temos mantido um público multicultural que nos apoia e acredita no nosso trabalho. A prova foi a forma como responderam e contribuíram para a realização deste CD. O projeto dele foi colocado na plataforma de crowdfunding e obtivemos 109% do montante necessário para gravar o CD. Mais de 160 pessoas de 10 nacionalidades diferentes contribuíram para o nosso álbum. Este é o público da D’ARTE, é o nosso público.

Vocês já se apresentaram ao vivo em Portugal? Se a resposta for afirmativa, qual foi a reação? E se negativa, há planos de tocarem lá em breve?
CR –
Como já me referi em pergunta anterior, temos três shows em Portugal marcados para os dias 27 e 28 de Fevereiro e 1º de Março de 2014. Os « Espelhos » fizeram a rota inversa dos nossos antepassados: partiram do Brasil para chegar a Portugal.

Quais os próximos passos do Projeto Espelhos? Mais shows? Um DVD gravado ao vivo? Um novo disco? E seus integrantes continuam se dedicando paralelamente a projetos próprios?
CR –
Para além dos shows que iremos realizar em Portugal, temos já vários concertos agendados na Bélgica. Em outubro voltaremos ao Brasil. Estado de São Paulo certamente. Para Salvador, Recife e Fortaleza há convites e contatos feitos. Certamente que não será possível atuar nas três cidades, mas voltaremos certamente, este ano ou mais tarde, a estas cidades que tão bem nos acolheram em 2011 e 2013.
Contamos gravar um novo CD após a tournée no Brasil. Estamos a preparar um novo repertório que já vai começar a rodar nos shows de Lisboa e ao longo do ano. Após a tournée estará mais que preparado para podermos entrar em estúdio. Prometemos mais inéditos, sem abandonar a poesia erudita, a música popular portuguesa e alguns ritmos brasileiros que tanto nos dizem.
Do grupo, apenas o acordeonista – Thibault Dille se dedica à música a 100% e integra diferentes projetos musicais, atuando sobretudo na Europa, mas também no resto do mundo (Vietnã, Canadá etc.). Para os outros membros do grupo, a música é um hobby a que nos entregamos com convicção e muito prazer. Dedicamos o resto do tempo a atividades tão diversas como a gestão financeira, a enfermagem, a antropologia e a educação.

Ouça Mar Alto, com o Espelhos:

Ouça Entardecer, com o Espelhos: