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Fábio Jorge esbanja classe e muita poesia no álbum O Tempo

fabio jorge tempo capa cd

Por Fabian Chacur

No início de 2020, o cantor Fábio Jorge (leia mais sobre ele aqui) celebrou 50 anos de vida sem nem ao menos imaginar o que estava se aproximando ali na esquina. Sim, veio a terrível pandemia do novo coronavírus, capaz de chacoalhar e apavorar o mundo. Uma das 1ª vítimas dessa terrível doença em nosso país, uma das mais de 600 mil que nos deixaram precocemente, foi a sua querida mãe. Em meio a essa dor insuportável, ele viu como forma de externar seus sentimentos mais profundos gravar um novo álbum. Eis a semente que gerou O Tempo, disponível nas plataformas digitais e com belíssima tiragem limitada em CD físico.

O 5º álbum do intérprete marca o fato de ter, pela primeira vez, quase todo o seu conteúdo em português, ele que até então se concentrava em canções escritas no idioma pátrio de sua mãe, o francês. Desta vez, a única música nesta língua é La Mamma, clássico sessentista do repertório do ícone da canção francesa Charles Aznavour. As outras nove canções foram selecionadas com precisão cirúrgica e muito bom gosto por Fábio, que fugiu de opções mais óbvias.

Ouvidas como um todo, as canções equivalem a um bom bate-papo com o ouvinte, envolvendo temas como a passagem do tempo, as idas e vindas do amor, as tristezas, as perdas e também a esperança de uma volta por cima e de seguir em frente com muita felicidade e fé, apesar dos pesares. Tudo com arranjos sucintos, de muito bom gosto e executados por músicos extremamente capacitados e sensíveis como Alexandre Vianna (piano), Joan Barros (violão), Thadeu Romano (bandoneon) e Rovilson Pascoal (também responsável por gravação, mixagem e masterização).

Do sempre inspirado Guilherme Arantes, temos a clássica Cuide-se Bem (1976), recado cada vez mais atual, e uma joia não tão conhecida, a intensa Nosso Fim Nosso Começo (1989), profunda análise de um relacionamento que fica em suspenso devido aos problemas de percepção típicos dos seres humanos. Ah, como seria bom dar um pé na porta dessas concepções medrosas e encarar a paixão de peito aberto! Eis o que essa música nos incentiva a fazer, nas suas maravilhosas entrelinhas, que Fábio nos oferece com finesse.

Do grande Gonzaguinha, que o intérprete já homenageou em show só com suas canções, temos a maravilhosa Pra Fazer o Sol Adormecer, que Maria Bethânia gravou em 1983 em seu álbum Ciclo. Outra canção do tipo dor-amor e centrada em contradições que se encaixam com rara felicidade é a absurdamente inspirada A Paz, parceria dos geniais Gilberto Gil e João Donato lançada nos anos 1980 e que tinha uma versão definitiva na voz de Zizi Possi. Tinha. Agora, a minha favorita é esta aqui. Ouçam e tentem não se emocionar, não ver as lágrimas vertendo de seus olhos sem que você as controle. Apenas tentem…

A melancólica e linda O Tempo foi defendida por seu autor, Reginaldo Bessa, no festival global Abertura, aquele vencido por Como Um Ladrão, na voz de Carlinhos Vergueiro, e não é de se estranhar que tenha sido escrita em plena ditadura militar que nos assolou naqueles anos de chumbo. Outras canções que vem daquele período são as ótimas Porta Estandarte (Geraldo Vandré, 1966) e Canção do Medo (Gianfrascesco Guarnieri-Toquinho, de 1972). A primeira virou um belo dueto de Fábio com Consuelo de Paula.

As escolhas mais recentes do repertório, que teve como consultor artístico o grande mestre Thiago Marques Luiz, são Tempestade (Zélia Duncan, 1994), com um arranjo surpreendente que ressalta sua letra densa, e Tá Escrito (2009), sucesso do grupo Revelação e de autoria do talentosíssimo Xande de Pilares (hoje em carreira-solo) que também surge aqui bem longe de seu clima de samba original, e belíssima.

Eis o momento de ressaltar o valor do dono da festa. A forma como Fábio Jorge resolveu botar pra fora suas dores, inseguranças e esperanças não poderia ter sido mais bem realizada. Com interpretações maravilhosas nas quais usa sua voz de veludo sempre na medida exata, sem excessos nem faltas, ele parece acariciar cada melodia, cada verso, nos fazendo entender todo o contexto da coisa. É coisa de craque, de talento absoluta.

Espero que esse trabalho possa ter dado a Fábio Jorge o alívio de que ele tanto necessita. Perder um ente querido é uma dor que nunca passa, nunca cicatriza, mas com a qual a gente aprende a conviver. E, na verdade, esses entes queridos permanecem vivos nas boas lembranças que nos deixaram, e que nos ajudam a suportar suas ausências. Dona Renée, onde estiver, deve estar sorrindo, orgulhosa do filho. E nós, ouvintes, somos gratos por tanta generosidade do filho dela de dividir esse processo artisticamente maravilhoso conosco.

Em tempo: que capa maravilhosa!

Ouça O Tempo, de Fábio Jorge, em streaming:

Taiguara no EP Como Lima Barreto, com gravações inéditas

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Por Fabian Chacur

Taiguara Chalar da Silva (1945-1996) nasceu no Uruguai, mas foi criado no Brasil, e se tornou um dos cantores, compositores e músicos que mais refletiu a beleza, o lirismo e a militância política na canção brasileira. Ao nos deixar precocemente aos 50 anos, deixou um legado musical de qualidade inquestionável. E é com muita alegria que celebramos o lançamento nas plataformas digitais do EP Como Lima Barreto, feito em parceria pelas gravadoras Kuarup e Saravá Discos e com quatro gravações inéditas do autor de Universo no Teu Corpo.

A gênese deste novo trabalho de Taiguara encontra-se em fitas cassete do acervo do jornalista e pesquisador musical Marcello Pereira Borghi. As gravações, provavelmente feitas durante a década de 1980, foram recuperadas de forma minuciosa pelo engenheiro de som Leonardo Nakabayashi.

Em três delas, tivemos o acréscimo de refinados acompanhamentos vocais e instrumentais dos quais participaram Zeca Baleiro (dono da Saravá Discos), Adriano Magoo, Swami Jr. e Tatiana Parra, entre outros.

A faixa que abre o EP é a mais impactante. Trata-se de uma gravação ao vivo do provavelmente maior clássico da canção de teor político da nossa música, Pra Que Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando), de Geraldo Vandré.

Com quase 10 minutos de duração, a gravação tem uma extensa fala em sua introdução na qual Taiguara fala sobre o mal que a ditadura militar fez à música brasileira e a importância de Vandré nesse contexto.

A plateia participa de forma vibrante da canção, que Taiguara emenda, na parte final, com a sua composição Voz do Leste, cuja versão de estúdio (com participação da dupla Cacique e Pajé) integra seu álbum Canções de Amor e Liberdade, lançado em 1983 e que marcou seu retorno discográfico após sete longos anos durante os quais foi perseguido pela censura.

Por dedução, dá para se imaginar que esta gravação tenha sido extraída de um show de divulgação deste álbum, na época. Das quatro faixas, é nesta que a voz do saudoso artista aparece mais cristalina e nítida.

Paulistana é uma bonita balada romântica com evidente influência de Tom Jobim e tempero quase erudito. Ave Maria também exemplifica a veia dedicada aos temas relacionados ao amor, só que com uma pegada mais pra fora.

Autor do livro Triste Fim de Policarpo Quaresma e figura importante da cultura brasileira, Lima Barreto é o tema da faixa que dá título ao EP, um samba-enredo composto com o intuito de ser utilizado em desfile da escola de samba carioca Unidos da Tijuca, o que infelizmente não ocorreu. O pique contagiante é ressaltado por violão sete cordas, percussão e coral acrescentados aqui.

Como Lima Barreto é um belo acréscimo à obra de Taiguara, um cantor de voz doce e compositor de algumas das mais expressivas e apaixonantes canções da nossa música durante as décadas de 1960 e 1970. Seu nome merece ser reverenciado, ainda mais em tempos tão obscuros e inseguros como os que vivemos na atualidade. Viva Taiguara!

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores/Voz do Leste (ao vivo)- Taiguara:

Trabalho de Geraldo Vandré é muito bem abordado em livro

geraldo vandre uma cancao interrompida

Por Fabian Chacur

Geraldo Vandré é uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da história da música brasileira. Inúmeros pontos de interrogação sempre pairaram sobre o seu trabalho como cantor, compositor e músico, especialmente seus problemas com a Ditadura Militar. Para quem quiser mergulhar de cabeça no tema, vale ler Geraldo Vandré- Uma Canção Interrompida, livro que nos permite conhecer a vida e obra do autor de Pra Que Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando).

Fruto de aproximadamente dez anos de minuciosas pesquisas por parte de seu autor, o experiente jornalista Vitor Nuzzi, o livro foi inicialmente lançado por conta própria em pequena tiragem. Com a regulamentação da lei sobre as biografias, a gravadora e editora Kuarup agora lança o livro em tiragem comercial, permitindo ao grande público ter acesso a um trabalho de fôlego digno do personagem enfocado no mesmo.

Sem conseguir entrevistas com o personagem de sua obra, Nuzzi superou essa dificuldade inicial fazendo inúmeras e significativas entrevistas com pessoas que trabalharam ou tiveram contato direto com Vandré, além de literalmente comer poeira nos arquivos de revistas, jornais, internet etc (e tome etc) para buscar o máximo possível de informações confiáveis, incluindo aí depoimentos do artista concedidos em entrevistas para outros repórteres.

Geraldo Vandré- Uma Canção Interrompida equivale a uma extensa reportagem, das boas, por sinal, na qual o autor se exime de dar opiniões ou analisar, deixando isso para suas fontes e sempre procurando dar ao leitor várias visões sobre cada questão, para que cada um possa tirar as suas próprias conclusões. Foi opção do autor fugir do clima romanceado de outras obras do gênero, e o resultado é elogiável.

O relato engloba toda a trajetória do paraibano Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, desde sua infância em João Pessoa até a participação, em 2014, em dois shows de Joan Baez em São Paulo, passando por tudo. O início nas rádios cariocas, a adesão à bossa nova, o desenvolvimento de uma obra calcada nas raízes da música nordestina, os festivais, os parceiros, os amigos, está tudo lá, sempre com minuciosos detalhes sobre cada personagem.

A incrível história que envolve suas músicas mais famosas, Disparada e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando), os problemas com o Regime Militar que o levaram a ficar fora do Brasil entre 1969 e 1973, seu estranho retorno ao país, o afastamento da carreira musical e as raras incursões públicas pela música são apresentadas de um jeito detalhado e acessível ao público médio.

Embora enfatize nos momentos corretos as ocorrências de cunho pessoal, o livro dá amplos espaços para aquilo que tornou o artista conhecido e digno de nota, que é a sua obra artística. Todos os seus poucos discos são esmiuçados, assim como canções que não foram gravadas, obras inéditas e muito mais, com direito a uma discografia no fim do livro (que também inclui uma bibliografia bacana).

“Causos” pitorescos e bem documentados ajudam a mostrar a singularidade de Geraldo Vandré, que aos 80 anos de idade continua sendo cultuado por muitos e odiado por outros tantos. O livro de Vitor Nuzzi é essencial para quem deseja não só conhecer a trajetória desse grande artista, mas também para se ter uma ideia do tamanho das mudanças ocorridas na indústria cultura nos últimos 60 anos.

Obs.: a capa, com uma imagem em preto e branco granulada do artista no palco ladeado por um banquinho e com o violão em mãos é simplesmente genial, uma obra prima, pois dá bem a dimensão de como esse artista que chegou a ser tão popular saiu de cena, pelas razões que podem ser descobertas em suas 350 páginas.

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)– Geraldo Vandré:

Na Terra Como No Céu- Geraldo Vandré:

Canção Nordestina- Geraldo Vandré:

Joan Baez, Vandré e um show inesquecível

Por Fabian Chacur

Foram 33 longos anos de espera, graças ao veto de uma Ditadura Militar que tantos males trouxe ao nosso amado Brasil. No entanto, enfim chegou a hora de vermos e ouvirmos um show de Joan Baez. O realizado na noite desta segunda-feira (25) no Teatro Bradesco (SP) valeu cada um dos aproximadamente 85 minutos de duração, com direito até ao sumidíssimo Geraldo Vandré em cena.

Acompanhada por dois músicos excelentes, com alguns momentos reservados ao clássico estilo solo do voz e violão, Miss Baez rejeita seus 73 anos de idade com uma postura jovial, inspirada e energética. Desde o início, mostra uma voz belíssima, que explora com sensibilidade, bom-senso e um controle impressionante. Além disso, toca violão muito bem, dedilhando com suavidade e técnica, além de se valer de vários instrumentos conforme a canção assim o exigia.

A eterna rainha da música folk deu uma bela geral em seu repertório clássico, com direito a interpretações expressivas de Farewell Angelina, It’s All Over Now Baby Blue (a minha favorita da noite), The Boxer, Joe Hill, Gracias a La Vida, Swing Low Sweet Chariot e Diamonds And Rust. Esguia e ainda muito bela, esbanjou simpatia e carisma em cada papo com o público, calculado em pouco mais de 1.400 pessoas.

Como faz habitualmente, ela agracia a plateia presente com releituras de clássicos locais, o que no caso brasileiro significou Mulher Rendeira, Maria Bonita e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Esta última teve, como na noite anterior, a presença no palco de Geraldo Vandré, seu célebre autor e figura totalmente sumida da mídia desde os já longínquos anos 70. O público vibrou de emoção ao presenciar esse tocante encontro.

Desta vez usando terno e bem alinhado, Vandré não cantou, mas recitou alguns versos em homenagem à cidade de Sâo Paulo. Depois, ficou fora do palco durante a belíssima interpretação de Joan, voltando para cumprimentar os músicos e a cantora em um abraço coletivo daqueles de fim de show. Um momento histórico que recebeu uma salva de palmas daquelas bem calorosas e intensas.

Uma bela vantagem para quem viu o segundo, e não o primeiro show em São Paulo. Nesta segunda (24), Miss Baez cantou ela mesma Blowin’ In The Wind, e nos poupou de uma nova e bizarra interpretação do caricato senador Eduardo Suplicy, um político respeitável que, no entanto, às vezes insiste em não ter senso de ridículo, estragando espetáculos alheios. Bob Gruen que o diga (leia sobre esse mico aqui).

No fim do espetáculo, após ter interpretado outro clássico pacifista, Imagine (de John Lennon), Joan Baez interpretou a capella (só voz) a maravilhosa Amazing Grace, conseguindo fazer com que o público a acompanhasse. Nada como viver em um regime democrático no qual temos o direito de ouvir uma artista que consegue ser politicamente engajada sem deixar a musicalidade de lado. De lavar a alma!

Veja o show de Joan Baez em SP realizado em 23 de março de 2014:

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