Por Fabian Chacur

Na vida, tudo vem na hora certa. Não adianta a gente espernear. É assim que as coisas acontecem. Quem sabe bem disso é a cantora, compositora e violonista Joyce. Aos 19 anos, participou de um célebre festival, em 1967, e recebeu sonoras vaias. Ela não desanimou, seguindo adiante.

Após gravar um disco em parceria com Nelson Angelo e outro para o mercado internacional que só chegaria aqui anos depois, casou, teve filhas e resolveu dar um tempo com a carreira. Viveu seu momento mãe em tempo integral.

Mas é lógico que alguém com o seu talento não ficaria nessa para sempre. De certa forma, a parada foi parecida com a de John Lennon, que também saiu de cena para criar o filho Sean. Curiosamente, ambos voltaram à tona no mesmo 1980. Pena que Lennon tenha ficado por aí, naquele doloroso 8 de dezembro que completará 30 anos em 2010.

Mas voltemos a Joyce. Aproveitando o bom momento como compositora que havia sido gravada por Elis Regina (Essa Mulher), Maria Bethânia (Da Cor Brasileira) e Boca Livre (Mistérios), seu lado cantora e violonista resolveu retomar a trajetória solo. E que retomada!

Feminina, o álbum que marcou esse momento chave em sua carreira, volta às lojas em uma edição comemorativa fantástica, com direito a digipack, encarte com belíssimo texto escrito pela própria artista, ficha técnica completa, letras e fotos das gravações.

Fica difícil ouvir as 10 faixas desse clássico perene da MPB e acreditar que o mesmo foi registrado há três décadas. O trabalho soa moderno, conciso, elaborado e simples ao mesmo tempo, aquele tipo de simplicidade que só uns poucos conseguem concretizar. Joyce conseguiu.

Com seu violão swingado e brasileiro até a medula como âncora, ela teve a sapiência de conceber um grupo sólido e sem excesso de instrumentos para acompanhá-la. O samba, a bossa nova e as baladas típicas da MPB servem como base.

As melodias nunca são menos do que maravilhosas. A voz de Joyce é uma verdadeira bênção tão preciosa como sua habilidade rítmica no violão. De quebra, temos as letras, que abordam de forma até então inédita o universo feminino e da relação homem/mulher, assim como o das amizades e da vida como um todo.

Alguns trechos das letras explicam melhor do que eu poderia: “esse coração de menino grande vive fora do trilho e é duro cuidar de um filho do seu tamanho” (Coração de Criança). “No entanto, cadê meus amigos, vai ver que a poeira do tempo levou, a barra da vida tem muitos perigos, e a gente se afasta sem querer, se perde dos velhos amigos” (Revendo Amigos).

Mais um pouco. “Ô mãe, me explica, me ensina, me diz, o que é feminina? Não é no cabelo ou no dengo ou no olhar, é ser menina por todo lugar” (Feminina). “Preciso aprender os mistérios do rio pra te navegar” (Mistérios). Não são versos de arrepiar?

E o disco tem provavelmente o maior sucesso da carreira de Joyce, Clareana, canção fofinha feita para as filhas Clara e Ana que se popularizou ao ser apresentada no Festival MPB 80, da Globo. Essa, ninguém teve a coragem de vaiar.

Além das canções citadas e de suas próprias leituras para os sucessos que deu para os outros artistas que citei lá em cima, o álbum também inclui um tema instrumental irresistivelmente dançante, Aldeia de Ogum, na qual Joyce só faz vocalizações.

Graças à descoberta de Aldeia de Ogum por DJs britânicos nos anos 90, o trabalho de Joyce atravessou fronteiras e a levou a ser considerada, lá fora, como uma artista de acid jazz. Pode? Claro que sim!

Feminina é para se ouvir de ponta a ponta uma, duas, três, um quaquilhão de vezes. Difícil não querer ter todos os discos de Joyce após se deliciar com este aqui. E pode acreditar: vale a pena.