bloco na rua ney matogrosso capa-400x

Por Fabian Chacur

Se há um artista que personifica com perfeição o pop à brasileira, ele sem sombra de quaisquer dúvidas é Ney Matogrosso. Em seus quase 50 anos de trajetória musical, ele nos oferece uma mistura dos mais diversos elementos sonoros, propondo-nos, dessa forma, um som ao mesmo tempo universal, pelo acréscimo de fortes elementos da música originada no exterior, e essencialmente brasileiro, pela forma como tempera essa obra. Eis o que podemos conferir em Bloco na Rua, seu mais recente trabalho, disponível desde o fim do anos passado no formato digital e agora também em CD duplo e, em breve, em DVD físico.

Bloco na Rua é o registro do show que estreou no Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 2019 e que, desde então, passou por diversos palcos brasileiros. A gravação ocorreu em julho do ano passado, no palco do Teatro Bradesco (SP), totalmente ao vivo, mas sem a presença de público. Chega a ser irônico se pensarmos na atual situação do show business mundial, uma atitude quase premonitória do que viria adiante.

O repertório nos oferece 20 músicas, sendo nove já gravadas anteriormente pelo artista na carreira-solo e com os Secos & Molhados, e 11 estreando em seu set list e discografia. Uma única dessas músicas é totalmente inédita, a sensacional Inominável, do compositor paulistano Dan Nakagawa. No entanto, a forma como Ney abordou cada canção dá a elas um molho de ineditismo que só quem é muito do ramo consegue fazer.

Para isso, ele contou com uma banda de apoio incrível que o acompanha há cinco anos, liderada pelo diretor musical, arranjador e tecladista Sacha Amback e que traz também os excelentes Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Maurício Negão (guitarra e violão), Dunga (baixo), Everson Moraes (trombone) e Aquiles Moraes (trompete e flugelhorn). Na faixa Postal de Amor, foi acrescentada a participação da Orquestra de Cordas de São Petesburgo.

O entrosamento entre o cantor e os músicos é impecável, fruto das diversas apresentações anteriores à gravação, e o registro da performance é padrão Ney Matogrosso, com iluminação esplêndida e detalhes cênicos que variam de canção a canção, sempre com o bom gosto e a ousadia habituais. Ney entra no palco usando uma máscara meio assustadora, que acabou sendo registrada na capa do CD duplo e que ele tira durante a primeira música.

Aliás, a apresentação visual do disco é maravilhosa, com direita a capa digipack luxuosa trazendo encarte com todas as letras das canções, fichas técnicas e fotos, além de dez deliciosos depoimentos de fãs referentes às performances do artista selecionados nas redes sociais.

Pode parecer redundante dizer isso, mas nada dessa produção toda valeria alguma coisa se a estrela da companhia não tivesse um desempenho à altura, e o ex-vocalista dos Secos & Molhados brilha com muita, mas muita intensidade mesmo. Aos 78 anos, ele se mostra mais apaixonado do que nunca por seu ofício, e mergulha com paixão e rigor técnico no repertório, tornando-o seu, mesmo que não tenha escrito nenhuma dessas músicas.

O set list de Bloco na Rua traz composições lançadas desde os tempos dos Secos & Molhados até esta década, mas elas soam com uma unidade, repletas de odes à liberdade, à coragem, à irreverência e ao lirismo (aqui e ali). O título, extraído da clássica Eu Quero é Botar Meu Bloco da Rua, de Sérgio Sampaio, reflete mesmo essa atitude de ir à luta, mesmo em tempos tão cinzas como os atuais.

Embora o show seja bom como um todo, vale destacar alguns de seus pontos altos, como a psicodélica Álcool (Bolero Filosófico), lançada em 2003 pelo autor, o DJ Dolores, a já citada Inominável, a sempre contundente Pavão Mysteriozo, hit máximo do cearense Ednardo, os clássicos de Tia Rita Lee Jardins da Babilônia e Corista de Rock, a tocante A Maçã, de Raul Seixas, e a envolvente Já Sei, de Itamar Assumpção. Sangue Latino e Mulher Barriguda, hits dos Secos & Molhados, surgem com novos e vibrantes arranjos roqueiros.

Bloco na Rua é a prova contundente de que Ney Matogrosso continua mais relevante do que nunca, mostrando que, como poucos, pode cantar os versos do grande Ednardo “não tenha minha donzela nossa sorte nessa guerra, eles são muitos mas não podem voar” sem medo de ser retrucado. Ele, pode, pelo menos em termos musicais e artísticos em geral.

Álcool (Bolero Filosófico)– Ney Matogrosso: