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Zé Brasil chega aos 71 anos mais ativo e criativo do que nunca

crédito: Dean Cláudio

crédito: Dean Cláudio

Por Fabian Chacur

O rock brasileiro possui algumas figuras incríveis que, por uma razão ou outra (ou por várias delas), não são reconhecidas como deveriam. Zé Brasil é certamente uma desses caras que você precisa conhecer para aprender detalhes importantes da história do nosso amado rock and roll brazuca.

Com 71 anos de idade e cinco décadas de estrada como cantor, compositor e músico, ele acaba de lançar um álbum espetacular, DoisMilEVinteUm, disponível em formato físico e também nas plataformas digitais. O disco traz participações especiais de nomes do porte de André Christovan, Fabio Golfetti (Violeta de Outono), Rolando Castello Júnior e Roberto Lazzarini, entre outros.

Vale lembrar que ele é parceiro de Arnaldo Baptista, gravou com Edgard Scandurra (Ira!) e Billy Forghieri (Blitz) e participou em 1975 do lendário Festival de Águas Claras, só para citar mais alguns feitos desse talentoso roqueiro paulistano. Em deliciosa entrevista a Mondo Pop, ele dá uma geral em sua trajetória e fala sobre este novo CD.

Mondo Pop- Fale um pouco do conceito por trás de DoisMilEVinteUm. Você lançou previamente quatro das 11 faixas em 2020 em um EP digital. Desde aquele momento já existia a ideia de criar este álbum completo que saiu agora ou isso veio depois?
Zé Brasil
– Você usou a palavra certa: conceito. “DoisMilEVinteUm” é um CD conceitual, para levantar a moral em meio à tragédia. Lancei online em 2020 o EP com quatro músicas e no final do ano o álbum completo com 11 músicas finalizadas durante esse tempo que marcou nossa geração pelo perigo e pela dor. Agora, no início de 2021 lancei a versão física. Todas as músicas já tinham sido lançadas como singles na maioria das plataformas através da distribuição da Tratore. Foi a primeira vez que usei essa estratégia de lançamento e o resultado está sendo muito interessante.

Mondo Pop- Em termos musicais, o seu novo álbum é bem diversificado, com vários estilos sendo desenvolvidos. Mas quem ouve certamente perceberá uma unidade, um sotaque próprio, que liga tudo. Fale um pouco sobre isso.
Zé Brasil
– Uma das minhas características como compositor é o ecletismo emoldurado pela linguagem do rock. Acho que isso decorre da minha formação como baterista, pois a bateria é um instrumento que propicia a execução de diversos gêneros musicais através dos diferentes ritmos. A unidade intencional transparece nos temas e nas letras das músicas. Pelas canções, busco transmitir uma mensagem com energia, alegria e esperança.

Mondo Pop- Como pintaram as participações especiais? Essa, digamos assim, troca de figurinhas com outros músicos é um elemento fundamental na sua criação, uma espécie de modus operandi seu?
Zé Brasil
– Tenho o privilégio de conviver e partilhar da amizade de grandes artistas e músicos de diversas gerações. Sempre quando me proponho a uma nova tarefa musical, tanto nos palcos como nos estúdios, convido e peço a colaboração dessa elite transgeracional. Atualmente, na minha carreira solo, isso tem se intensificado e enriquecido todas as canções, em geral a partir de guias e arranjos de base que eu forneço. Acostumado ao trabalho coletivo nas bandas, essa situação traz novas possibilidades e mais liberdade de criação artística.

Mondo Pop- Uma de suas músicas do novo álbum intitula-se Povo Brasileiro. Fale um pouco sobre a mesma, e sobre o seu recado.
Zé Brasil
Povo Brasileiro é um testemunho poético/musical da visão mágica e psicodélica da nossa gente que compartilho com meu parceiro/letrista Nico Queiroz. Nossa atual realidade, careta e preocupante, ainda nos permite sonhar com um mundo novo regido pela paz, amor e compaixão.

Mondo Pop- Quando surgiu o nome artístico Zé Brasil? Como você se sente levando o nome de seu país nas costas? Rsrsrsrs
Zé Brasil
– Antes de tudo, é uma prova de fé e amor pela nossa terra. No final dos anos 1960 e começo dos 1970, na sala de visitas da minha casa da rua Padre João Manuel, no bairro Cerqueira César da capital paulista, os músicos ensaiavam e improvisavam (principalmente) com nossas namoradas e amigas. Era uma atividade amadora, mas que nos ajudou muito nas futuras atividades profissionais. Chegamos inclusive a nos apresentar no Colégio Equipe e na Fundacão das Artes de São Caetano do Sul, levando de trem a banda e os instrumentos até aquela cidade da Grande São Paulo. Eu nomeei essa turma de Grupo Brasil, e desde então fiquei conhecido como Zé Brasil. No ano de 1972 me apresentei pela primeira vez como Zé Brasil e a nata dos músicos que tocavam comigo no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Já em 1973, em Arembepe, na Bahia, o espírito do Zé Brasil se incorporou definitivamente em mim através de uma viagem de ácido e viola caipira.

Mondo Pop- Como a música surgiu na sua vida, e como foi o seu início na carreira de músico?
Zé Brasil
– Acho que eu fui predestinado: meu primeiro presente, que ganhei da minha mãe quando nasci, foi um pandeirinho… hehehe. Sou descendente de músicos e políticos. Meu tataravô paterno fundou a banda Aurora Aparecidense em 1886 na cidade de Aparecida do Norte (SP), e o pai dele já era músico. Meu avô materno liderou a independência de Aparecida e foi seu primeiro prefeito. Meu tio foi ministro no governo Sarney. No meu caso, desde cedo ouvia todo tipo de música na vitrola de casa: brasileira, erudita, orquestras americanas etc. Também me maravilhava com os saraus na casa das minhas tias em Aparecida, onde meus parentes demonstravam toda a sua maestria cantando e tocando as peças do repertório erudito no piano, violino e cello. Aí veio o rock and roll e me abduziu. Estamos falando dos meados da década de 1950 e a bela professora de piano surge como mais um estímulo para me jogar de corpo e alma nessa estrada. No início da adolescência me aventurei no violão com os cadernos de aulas do meu irmão. Também comecei a compor, mas aos quinze anos a bateria, que já me seduzia, me conquistou definitivamente. De lá para cá muita água passou debaixo dessa ponte: estudei, viajei, conheci muita gente incrível e pratiquei muito para me apresentar e gravar da melhor forma possível, sempre respeitando a música como arte, missão e o ouvinte como prioridade.

Mondo Pop- O documentário O Barato de Iacanga trouxe para as novas gerações o trabalho do seu grupo Apokalypsis. Fale um pouco sobre ele, sobre como foi a participação no Festival de Águas Claras em 1975, e do porque o grupo acabou. Pensa em voltar com ele um dia?
Zé Brasil
– Saí da Space Patrol em meados de 1974 para fundar o Apokalypsis. O Prandini (guitarra, sax, flauta e viola caipira) já tinha tocado comigo e trouxe o Tuca Camargo (piano). O Edú Parada (in memoriam, baixo) me foi indicado pelo Rolando Castello Junior (n da r. :fundador e líder do grupo Patrulha do Espaço) que era meu amigo e vizinho. Ensaiávamos todos os dias e logo fomos contratados pela Trinka Produções Brasileiras, do empresário Fernando Tibiriçá. Nossa estréia oficial foi no TUCA, que era o templo dos grandes shows musicais da época. Depois, nos apresentamos no Teatro Aquarius, ainda em 1974, num show memorável, gravado e depois lançado pelo meu selo Natural Records em 2009 no CD “1974”. No início de 1975, fomos contratados pelo empresário Gabriel Neto e participamos do Festival de Águas Claras tocando duas horas e meia para um público acordando num domingo de sol. Não queriam nos deixar sair do palco. Fomos até Londres em 1978 e o nosso farewell show da fase setentista foi em fevereiro de 1979. O Apokalypsis voltou aos palcos em 2006 e continua hibernando nos shows ao vivo por causa da pandemia, mas contando com novos integrantes para apresentar seu repertório progressivo setentista e novas músicas compostas no Século XXI. Também lançou novos álbuns, CDs e se apresenta com grandes artistas convidados nos shows do Movimento 70 De Novo que fundei com meu parceiro Nico Queiroz em 2006.

Mondo Pop- Como foi a sua parceria com o Arnaldo Baptista, especialmente na criação do Space Patrol, e porque você não seguiu adiante com aquele grupo? Fale um pouco sobre a canção que vocês compuseram juntos.
Zé Brasil
– Antes de viajar para os Estados Unidos, participei do Festival de São Lourenço, Minas Gerais, em meados de 1973. O Arnaldo Baptista tinha acabado de sair dos Mutantes e também se apresentou lá. Já o conhecia desde 1968 no Tropicalismo, mas foi então que ficamos amigos. Em seguida fui para os EUA onde, além de viajar de carona pela costa leste de Miami a Nova York e depois cruzar o país até a Califórnia, toquei bastante em San Francisco, tanto na rua quanto em coffee houses e nightclubs. Na volta, reencontrei o Arnaldo e, com o Alan Kraus que era técnico dos Mutantes e guitarrista, fundamos a Space Patrol no final de 1973. Depois o Alan, que deu o nome à banda, saiu, e entrou o guitarrista Marcelo Aranha (in memoriam). A Space Patrol ensaiava sempre na casa do Arnaldo na Mutantolândia da Serra da Cantareira, assim como os Mutantes do Sergio Dias e o Tutti Frutti da Rita Lee na casa do Sergio. Jams memoráveis aconteciam frequentemente com os músicos das três bandas. Ensaiávamos, desde novembro de 1973, o repertório do disco Loki? que o Arnaldo iria gravar no segundo semestre de 1974. Tivemos o privilégio de participar dessa gestação e da formatação dos arranjos das músicas. Apresentamos esse repertório em dois grandes festivais no Parque do Ibirapuera: no final de 1973 e em janeiro de 1974. A curiosidade do Show do Cometa, como ficou conhecido o primeiro em 1973, é que foi a única apresentação em que os três Mutantes originais se apresentaram com suas bandas: Arnaldo Baptista (Space Patrol), Sergio Dias (Mutantes) e Rita Lee (Tutti Frutti). O segundo festival, comemorando o aniversário de São Paulo, foi nossa melhor performance, com grandes bandas paulistanas (Som Nosso, Made in Brazil, Mutantes), quando apresentamos na íntegra o repertório do que viria a ser o Loki? para um público estimado em 25 mil pessoas. Depois, continuei ensaiando com a Space Patrol até meados de 1974, quando amigavelmente saí para fundar o Apokalypsis, minha banda do coração até hoje. O único integrante da Space Patrol que gravou no Loky? foi o saudoso baixista Sergio Kaffa, que entrou em 1974 e nunca se apresentou ao vivo com a gente. Minhas melhores lembranças desse tempo estão em imagens em Super 8 mm do Mario Luiz Thompson da nossa presença no Festival da Saúde Perfeita, de novo em São Lourenço, em 1974. O legado da Space Patrol está também registrado na música Cabelos Dourados, que compus em 2005 com uma letra que o Arnaldo me deu nas manhãs setentistas da Cantareira em 1974. É um rock and roll que contagia as plateias e ouvintes nos shows do Apokalypsis.

Mondo Pop- Porque você demorou tanto para lançar trabalhos como artista solo?
Zé Brasil
– Desde 1965 sou independente, mas preocupado com o presente e o futuro da humanidade. Talvez, aliado ao sonho das bandas inspiradas pelos Beatles, essa característica tenha me conduzido a um trabalho coletivo na música. Com a Silvia Helena, comecei a ensaiar e me apresentar em duo também. Mas nunca deixei de compor, estudar e praticar. Isso naturalmente me levou a uma atitude e comportamento de liderança na música. Ao mesmo tempo sempre desenvolvi um trabalho solo que só dependesse de mim. Em algumas ocasiões cheguei a me apresentar ao vivo e consegui concretizar essa situação em 2017, quando lancei o primeiro EP como Zé Brasil. De lá para cá, venho me apresentando nessas condições: artista solo, duo, convidado, com bandas (Apokalypsis, Delinquentes de Saturno, UHF) e no Movimento 70 De Novo.

Mondo Pop- Fale um pouco sobre a sua duradoura e consistente parceria musical e afetiva com a Silvia Helena.
Zé Brasil
– Em 17 de novembro de 1975, conheci a cantora Silvia Helena num show do Gilberto Gil no Teatro Aquarius em São Paulo. Desde então, estamos juntos na vida e na música. Casamos em 1977, lançamos nosso primeiro disco em 1976, viajamos para Europa em 1978 e constituímos, desde 1981, uma família maravilhosa com nossos filhos Alexandre e Andréa. Minha satisfação maior é quando subimos, os quatro, no palco juntos. Já com a Silvia Helena, cantamos, compomos e tocamos em duo ou com banda. O sentido da minha vida é buscar e propagar paz, amor e compaixão. Isso só foi possível a partir do nosso encontro. Acho que é o que nos define, inspira e fortalece.

Mondo Pop- Bicho Grilo, uma das faixas do seu novo CD, brinca com um certo preconceito existente contra o espírito hippie no Brasil. Fale um pouco de como é lutar contra isso, contra os estereótipos negativos.
Zé Brasil
– Acho que o humor é arte e, quando integrado positivamente na música, agrega interesse e diversidade. Procuro compor canções que lidam com os diversos sentimentos e emoções, incluindo o bom humor. Bicho Grilo, parceria com o Edu Viola, que é meu amigo desde 1968, é uma brincadeira com o estereótipo do hippie/bicho grilo, que surgiu na transição dos anos 1960 para os anos 1970 no Brasil. Éramos, de uma certa maneira, todos bichos grilos na nossa ingenuidade e esperança por um mundo melhor, apostando no rock e na Era de Aquarius.

Mondo Pop- Você foi um dos criadores do projeto 70 de Novo, em 2006. A quantas anda, e como avalia os frutos colhidos com o mesmo?
Zé Brasil
– O Movimento 70 De Novo resgatou uma década complexa da história do Rock Brasileiro. Para muitos foi o ápice da criatividade e qualidade musical dessa vertente. Por causa das condições sócio-políticas decorrentes da repressão da ditadura militar, a maioria dos artistas e músicos permanece praticamente desconhecida do grande público atual. Tínhamos dezenas de milhares, pelo menos, de seguidores naquele período, mas hoje em dia somos conhecidos por um nicho de aficionados que conhecem nosso trabalho através dos discos e registros que sobreviveram até aqui. O Apokalypsis, ao contrário das grandes bandas da época, não chegou a gravar por um capricho do destino. Apesar de ser considerado a revelação de 1975, está sendo reconhecido e apreciado por um maior número de pessoas através dos shows, discos gravados no século XXI e do documentário O Barato de Iacanga. O mesmo acontece com os grandes artistas e músicos que participam dos nossos shows/celebrações. Meu parceiro Nico Queiroz, que batizou o Movimento 70 De Novo, e eu vivemos intensamente esse tempo inesquecível do underground paulistano e brasileiro.

Mondo Pop – O seu show celebrando 70 anos de vida foi um dos últimos realizados antes da pandemia. A festa musical ocorreu poucos dias antes disso. Como você encara essa feliz coincidência?
Zé Brasil
– Chegar aos 70 anos não é fácil, mas é gratificante. Resolvi celebrar da melhor forma possível e, ao mesmo tempo, agradecer pela minha vida. Todos que compareceram receberam um CD Zé Brasil de presente. O show contou com caros e talentosos amigos que proporcionaram um belo espetáculo. Minha família compareceu em peso e a casa estava cheia de gente feliz. Foi o meu melhor aniversário até hoje.

Mondo Pop- Vivemos atualmente no Brasil um clima de muito retrocesso, com extremismos e reacionarismo no ar o tempo todo. Você iniciou sua trajetória musical na época da ditadura militar. Como compara essas duas épocas? Tem esperança de que isso mude em um futuro próximo?
Zé Brasil
– Houve um tempo em que eu evitava comparações, dualismos, dialética, essas coisas. Buscava a unidade espiritual e intelectual. Hoje, mais experiente, procuro ser tolerante e compreensivo. Meu radicalismo me forçou a dois exílios voluntários: em 1975 nos Estados Unidos e em 1978 na Europa. Fui torturado no pau-de-arara, levei choques e porradas. Não penso mais em me mudar do Brasil. Uma das principais diferenças entre os dias de hoje e os da ditadura militar é a quantidade e a facilidade de informação. É muito mais difícil, quase impossível, esconder algum fato verídico da população. Ao mesmo tempo é muito mais fácil disseminar mentiras, fake news, etc. Sempre fui progressista, a favor das mudanças, da evolução, da diversidade, da democracia… Enfim, agradeço pela minha criação e formação de caráter para enfrentar e resistir ao arbítrio, negacionismo, ignorância e fanatismo.

Mondo Pop- Aos 71 anos de idade, você se mantém mais ativo do que nunca. Qual a receita para chegar a esse momento da vida nesse pique todo?
Zé Brasil
– Paz, amor e compaixão, babe!

Mondo Pop- Bem, era “só” isso, por enquanto rsrsrsrrs Desde já, agradeço pelas respostas e um grande abraço!
Zé Brasil
– Sou eu é quem agradece, jovem e talentoso amigo.

Povo Brasileiro– Zé Brasil:

2 Comments

  1. Como sempre na mosca caro Fabian.

  2. Fabian Chacur

    May 27, 2021 at 12:41 am

    Muito obrigado pela belíssima entrevista concedida a Mondo Pop, meu caro Zé Brasil, e ótima sorte com este seu novo trabalho. Viva o rock brasileiro. 70 de Novo!

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