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Por Fabian Chacur

Em um distante dia de 1998, estava este repórter na sala da casa de Beth Carvalho, situada em um bairro bacana do Rio de Janeiro, um local alto com bela vista. Com a desenvoltura que lhe era habitual, ela me disse que nunca deixou a seleção das músicas de seus discos para quem quer que fosse. Na hora de bater o martelo, quem fazia isso era ela. “Você pode me perguntar a música que quiser, de qualquer dos meus discos, e eu te direi como e porque gravei”, afirmou, com autoridade. Essa embaixatriz do samba nos deixou nesta terça-feira (30), aos 72 anos, após sofrer durante quase dez anos.

Nessa dura década, esta cantora e musicista carioca chegou a ficar internada em hospitais por longos períodos. Mesmo assim, fez alguns shows e gravou. Ficou marcada sua performance em uma espécie de sofá instalado no palco para que pudesse entrar em cena e dar conta do recado. Até brincou, dizendo que, se houve “Na Cama Com Madonna” (o célebre filme da estrela americana), por que não poderia haver “Na Cama Com Beth Carvalho”? E assim se fez.

Beth nos deixa na antevéspera de seu aniversário de 73 anos, que seria completado no próximo dia 5 de maio (nasceu em 1946, no Rio). Sua ligação com a música teve início logo cedo, e mesmo oriunda de uma família de classe média, a moça logo se engraçou com a música, integrando um grupo influenciado pela bossa nova e depois partindo para a carreira solo. O primeiro sucesso veio em 1968, ao interpretar em um festival a canção Andança, ao lado dos Golden Boys.

O mergulho no samba, como intérprete, consolidou-se na década de 1970, especialmente a partir do esplêndido álbum Pra Seu Governo (1974), no qual consegue captar o som do samba mais próximo das rodas de partideiros, com direito a faixas matadoras como Miragem, A Pedida é Essa e outras. Em pouco tempo, com sua voz potente e charmosa e uma presença de palco marcante, tornou-se uma diva do gênero, ao lado de Clara Nunes e Alcione.

Inquieta, sempre buscava novos compositores e espaços dedicados ao samba, e nessas garimpagens, deu espaços importantes nos anos 1970 e 1980 para que artistas então desconhecidos, como Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila e o Grupo Fundo de Quintal (de quem se autonomeou madrinha) ganhassem os holofotes que mereciam. E vale lembrar que é dela a gravação original, e de maior sucesso, de um clássico perene do grande Cartola, As Rosas Não Falam, que foi até trilha de novela global.

Em sua fase áurea, entre as décadas de 1970 e 1980, a cantora carioca empilhou clássicos nas paradas de sucesso, como Vou Festejar, Saco de Feijão, Coisinha do Pai, 1.800 Colinas e tantos outros. Em um show dela que tive a chance de ver, lá pelos idos de 1986, no 150 Night Club do Maksoud Plaza, em São Paulo, vi a intérprete ser obrigada a repetir por três ou quatro vezes Andança, tal o entusiasmo do público presente.

Em 1987, Beth Carvalho lançou um álbum histórico, Ao Vivo em Montreux, gravado durante um show no histórico festival de jazz na Suíça, um marco na história do samba. Várias vezes ela mostrou os seus sucessos em shows no exterior, sempre com grande repercussão por parte do público.

Um de seus discos mais marcantes foi Saudades da Guanabara (1989), com pelo menos duas faixas marcantes: a que lhe deu título, de autoria de Paulo Cesar Pinheiro, Moacyr Luz e Aldyr Blanc (ouça aqui) e que lembrava de tempos melhores na história carioca, e a música Botafogo Campeão (Esse é O Botafogo Que Eu Gosto) (ouça aqui), na qual celebrava o título carioca que seu time de coração ganhou naquele 1989, após 21 anos sem gritar é campeão. Discaço mesmo!

Ao contrário de outros artistas, que preferem guardar para si suas preferências políticas, Beth sempre se mostrou defensora de ideias progressistas, sendo uma brizolista fanática, especialmente por causa da implantação dos CIEPS. Certamente não devia estar muito feliz com os atuais rumos da política brasileira. Seja como for, deixa uma marca fortíssima na história da nossa música, como divulgadora de um de nossos gêneros musicais mais populares e significativos. A frase é um baita de um clichê, mas não há como fugir dela: o brasileiro está de luto com a sua partida prematura.

Ouça o álbum Pra Seu Governo, de Beth Carvalho, em streaming (obs.:a versão da faixa Maior é Deus é de outro disco, não a original desse álbum clássico, mas está valendo, assim mesmo):