war the world is a ghetto cover-400x

Por Fabian Chacur

No dia 17 de fevereiro de 1973, o álbum The World is a Ghetto chegou ao topo da parada americana, onde se manteve por duas semanas, além de vender mais de 3 milhões de cópias por lá. Com este trabalho, a banda War atingiu o ponto máximo de sua carreira em termos de sucesso comercial e criatividade. Prova de que, sim, qualidade artística e ousadia podem gerar muito dinheiro. E a história em torno desta banda é das mais interessantes.

Tudo começou em 1962 em Long Beach, situada na região de Los Angeles, California (EUA), quando os adolescentes Howard Scott (guitarra, percussão e vocais) e Harold Brown (bateria, percussão e vocais) deram início à banda The Creators. No decorrer dos anos, entraram no time B.B. Dickerson (baixo, percussão e vocais), Lonnie Jordan (teclados, percussão e vocais), Papa Dee Allen (percussão e vocais) e Charles Miller (clarinete e sax).

O então sexteto foi pegando corpo e entrosamento graças a inúmeras apresentações em casas noturnas da Califórnia e arredores, e aos poucos criou um estilo próprio, com forte influência de música latina, jazz, rock, soul e r&b. O fato de terem acompanhado o saxofonista Jay Contreli também incorporou elementos de psicodelia ao seu som.

Nesse meio tempo, o cantor britânico Eric Burdon, que havia ganho fama mundial integrando a banda The Animals e depois Eric Burdon & The Animals, foi para os EUA em busca de novos rumos para a sua carreira. Ao lado do produtor Jerry Goldstein, conhecido ser o coprodutor dos hits Hang on Sloopy (1965), dos McCoys, e My Boyfriend’s Back (1963), dos The Angels, percorria Los Angeles em busca de possíveis novos parceiros.

O primeiro a ser arregimentado foi o dinamarquês Lee Oskar, que se mudou para os EUA com a roupa do corpo e a sua harmônica em busca de fama e tocava em bares em troca de dinheiro. Ele, Burdon e Goldstein queriam uma banda para acompanhá-los, e é aí que o The Creators, cujo nome havia sido trocado para The Nighshift, entra em cena. O trio os viu, curtiu seu som e os chamou para uma conversa.

Estávamos em junho de 1969. O papo foi muito produtivo, e o sexteto topou unir forças com eles. A única exigência foi a mudança de nome. Burdon e Goldstein sentiram que, em função da Guerra do Vietnã e do clima vigente, o nome War para um grupo musical poderia ser bem chamativo, e a nova entidade musical seria batizada como Eric Burdon & War.

Mesclando composições de autoria dos músicos a releituras de material de outros artistas devidamente repaginados, o grupo entrou em 1970 com um ótimo álbum de estreia, Eric Burdon Declares War, do qual foi extraído um single explosivo, Spill The Wine, que atingiu o 3º posto na parada norte-americana com sua levada latina e o vocal falado de Burdon.

O álbum, que chegou ao 18º lugar nos EUA, impulsionou shows da banda pelos EUA e também Europa. Em um deles, no dia 16 de setembro de 1970, no badalado Ronnie Scott’s em Londres, contaram com uma canja de ninguém menos do que Jimi Hendrix. Esse evento se tornaria histórico de forma triste, pois foi a última aparição pública do mago da guitarra, que morreria apenas dois dias depois.

Ainda em 1970, sairia Black Man’s Burdon, o 2º álbum do grupo, que chegou à 28ª posição na parada ianque. Em 1971, enquanto faziam shows bem concorridos, o grupo decidiu que iria investir em uma carreira paralela sem Burdon, e lançou War, álbum com pequena repercussão. O que eles não imaginavam é que o instável vocalista inglês sairia da banda em meio a uma turnê, novamente em busca de novos rumos.

Apesar da saída de Eric Burdon, Goldstein resolveu apostar na banda assim mesmo, confiando na qualidade dos caras como músicos e compositores. Naquele mesmo 1971, o agora septeto nos oferece All Day Music, e desta vez a coisa vai bem, com o disco chegando ao 18º lugar nos EUA e emplacando hits como a faixa-título e Slippin’ Into Darkness.

Era nesse clima positivo que o War iniciou os trabalhos para o que viria a ser o seu 3º álbum na fase pós-Eric Burdon. Jerry Goldstein estava tão animado que reservou o Crystal Studios, em Los Angeles, por 30 dias consecutivos, para que a banda pudesse trabalhar à vontade e sem se preocupar com o fim de sessões de um dia para outro. Períodos com 12 horas seguidas de duração das gravações eram comuns.

A ideia de Goldstein não poderia ter sido melhor, porque os sete integrantes do War sempre trabalhavam juntos, criando melodias, letras e arranjos das músicas de forma coletiva, tanto que todos assinavam a autoria das faixas, sendo que em uma ou outra Goldstein também adicionava o seu nome. E foi nesse espírito de time que surgiram as seis faixas de The World is a Ghetto.

O álbum saiu nos EUA em novembro de 1972, e trouxe como uma de suas marcas as letras com temáticas sociais e pacifistas, com direito a umas pitadas de bom humor e de espiritualidade no meio.

Uma análise das faixas de The World is a Ghetto

THE CISCO KID (4m35)- ouça aqui.

Nenhum dos integrantes do War é descendente de latinos. No entanto, o fato de terem sido criados na região de Los Angeles (com a óbvia exceção de Lee Oskar) incorporou à musicalidade deles forte salerosidade, percussão acentuada e um swing irresistível. Cisco Kid é um dos momentos mais emblemáticos e escancarados dessa vertente da banda, e homenageia em sua letra o personagem Cisco Kid, vivido pelo ator Duncan Renaldo (1904-1980) na TV americana entre 1950 e 1956.

Era, então, o único herói latino televisivo, e homenageá-lo deu ao War ainda maior penetração na população latina dos EUA. O single atingiu o 2º lugar na parada ianque, seu maior hit. O grupo premiou Duncan Renaldo, dando a ele um disco de ouro, em encontro eternizado por fotos icônicas.

WHERE WAS YOU AT (3m25)- ouça aqui.

Com uma variação rítmica impressionante, o septeto nesta música se vale da influência do funk de New Orleans, especialmente graças à batida irresistível criada pelo baterista Harold Brown. Outro ponto alto fica por conta dos vocais em uníssono duelando com o habitual vocalista líder, Howard Scott, outra das marcas registradas deste grupo, sempre com efeito contagiante.

CITY, COUNTRY, CITY (13h18)- ouça aqui

O War era uma banda auto-suficiente, pois não precisava de músicos de apoio ou de estúdio em seus shows e gravações. O talento, criatividade, ousadia e entrosamento deles explica faixas como esta.

A única totalmente instrumental do álbum abre com um clima sereno, pontuado pela harmônica de Lee Oskar, e depois envereda por variações pulsantes e envolventes que tornam seus mais de 13 minutos de duração mais do que justificáveis e de puro prazer auditivo.

Seu clima cinematográfico não é por acaso, pois foi concebida para integrar a trilha do filme The Legend of Nigger Charley (1972), mas a banda ficou insatisfeita com o tratamento que recebeu por parte dos produtores e preferiu ficar com City, Country, City para incluí-la neste álbum.

FOUR CORNERED ROOM (8m30)- ouça aqui.

O momento mais psicodélico do álbum, com um clima hipnótico e letra que mergulha nas questões particulares de cada pessoa, naquilo que ocorre internamente com cada um de nós e que ninguém percebe.

Outra prova contundente da qualidade dos músicos, com cada um aproveitando para desenvolver os seus solos mas sem cair no mero exibicionismo. Os poderosos vocais em uníssono e a alternância de sax e harmônica também dão um tempero extremamente envolvente.

THE WORLD IS A GHETTO (10m10)- ouça aqui.

Com uma letra poderosa e de forte conteúdo social, a faixa que dá nome ao álbum começa com um solo memorável de sax de Charles Miller, e depois mergulha em um clima soul e um refrão marcante. Novamente os vocais se mostram poderosos e impactantes, e a guitarra roqueira com pedal wah wah de Howard Scott também acrescenta mais poder a uma música impactante. Uma versão editada foi lançada no formato single e chegou ao 7º lugar nas paradas americanas, mas a do álbum é a melhor.

BEETLES IN THE BOG (3m51)- ouça aqui

O álbum é encerrado com uma canção balançada e divertida, no melhor estilo dançante e também com alguns ecos do som de Nova Orleans. Poderia ter sido lançada em single, mas isso não ocorreu, provavelmente pelo fato de o álbum ter sido um estouro de vendas, sendo apontado pela Billboard, a bíblia da indústria fonográfica norte-americana, como o mais vendido naquele país durante o ano de 1973.

OBS.: a versão remasterizada do álbum lançada em 2012 trouxe quatro faixas-bônus:

Freight Train Jam (5m26)- Ouça aqui– inclui trechos do refrão de The Cisco Kid

58 Blues (5m26)- Ouça aqui. Como o nome já entrega, um blues pontuado pela harmônica de Lee Oskar.

War is Coming (blues version)- ouça aqui. (6m15)

The World is a Ghetto (rehersal take)- Ouça aqui (8m06)-

Apesar do nome, o War sempre foi uma banda de cunho pacifista, o que pode se conferir nas letras de suas músicas. E essa somatória de músicas contagiantes e mensagens fortes deu a eles um grande sucesso comercial na década de 1970. Outros trabalhos marcantes viriam, mas World is a Ghetto é mesmo o seu momento máximo.

Curiosamente, o álbum ficou por muitos anos fora de catálogo por problemas com a gravadora, só retornando nos anos 1990 graças ao selo Avenue Records, criado por Jerry Goldstein exatamente para relançar os trabalhos dessa banda seminal.

The World is a Ghetto (single version)- War: